Levanto-me, transcendo do sono que me quer impor uma dormida e vou. Calço chinelos de tacões altos e saio. Deambulo por esta cidade fria que o meu vestido de verão e um par de calças de ganga coçadas não protegem. Vindo do céu, ou que sabe de baixo, um voz feminina afirma que uma gota de sentimento vale por tudo, mesmo despedaçado. Ouço um choro, dois ou três, vejo que são de uma menina que não percebe nada de futebol, de uma prostituta de lábios vermelhos vivos e de uma adolescente bonita que sorri, no meio das lágrimas. Ao pé, uma beleza exótica de roupa esfarrapada pela viagem cai junto à estrada. Aproximo-me, ponho a mão no bolso para tirar a nota que guardei para comprar um par de calças da moda, mas só retiro 40 céntimos. Suspiro. Encolho os ombros e abeiro-me da miúda explicando-lhe o que é um fora de jogo, enquanto retiro de um bolso o meu batom rosa favorito e ofereço-o à mulher de mini saia preta ao seu lado. Hesito frente à adolescente...mas ela não o faz, e abraça-me porque não sabe fazer as escolhas certas. Seguro-a, não sei o que fazer, mas fico calada. Tento ignorar os soluços que emanam dos ombros frágeis da viajante. Confundem-me. Incomodam-me. Fazem-me sentir culpada. Mas olho-a e ela estremece. Fala comigo palavras imperceptiveis de que não compreendo as sílabas mas adivinho o sentido. Orgulho de mulher e surpresa, trespassados por um balbuciar de compreensão. Pega na mochila ao seu lado e antes de partir oferece-me um echarpe rosa que ainda cheira a novo. Murmura uma ameaça e foge como uma fera ferida, para dentro de uma casa.
Eu continuo o meu caminho, passo pela aldeia que conheço desde sempre, olho a praça onde imagino um casal colado a beijar-se, rente ao chafariz. Prometo, que para a próxima trago a máquina e eternizo esse momento. Passo por uma escola, brinco com um dos miúdos, rodopiando-o para sempre e canto todas as canções da disney que memorizei desde a infância. Digo que odeio o rato Mickey e que sempre gostei do pato Donald. Uma menina ri-se e diz que hoje todas adoram o Pateta. E gozam comigo porque não tenho voz para cantar. Mas fico feliz porque já faço parte do grupo no momento em que me convidam para ir numa visita de estudo. Não posso e aceno dizendo adeus, enquanto eles correm para dentro do autocarro. Fico na paragem à espera. Pedem-me uma dedicatória de final de curso e as palavras fogem-me, mas lá escrevo sonhos recheados de até breves e de esperanças. Quando começa a chover lembro-me que ali só há cimento e prefiro seguir o cheio da terra molhada. Sento-me nas escadas do jardim e escrevo uma mensagem sem destinatário. Ignoro as vozes que se riem esquecendo-se dos amores passados e desço a estrada feita de pedras de calçada. Escorrego e caio. Deixo-me ir. Já estou magoada e ferida. E a chuva não me consegue afogar. Vou parar à beira do terminal. Os meus olhos doridos vêm que parou de chover e um homem com hálito de bêbado ajuda-me a levantar. Graceja e diz que eu devia andar de comboio. Empurra-me para dentro do vagão e acena-me com uma máscara de madeira. Eu vou, sem perceber nada. As paisagens que não consigo captar passam por mim, velozes. Sento-me, meio distraída ao pé de uma mulher que lê tarot. Ouço risadinhas e percebo que as cartas são como pequenas televisões de onde ela observa o mundo. Televisões modernas a três dimensões, já que ela com os seus dedos esguios comanda as acções dos actores. Arrepio-me e tento levantar-me no momento em que o comboio pára. O safanão faz uma garrafa com um líquido transparente partir-se. Inalo-o e sinto-me tonta. Não posso dormir! Saio depressa, mas a mulher deu por mim e sorri. Mas não me impede de fugir. Sigo, hipnotizada, pelo comboio, sento-me na carruagem do fundo, onde não está ninguém. No chão mais que pisado estão letras escritas que não consigo ler. Parto as unhas ao tentar raspar a sujidade que se entrelaça naquela que pode ser a minha verdade. Penso que cheguei tarde e que perdi metade do filme. Sinto que o momento eterno já passou e como Álvaro de Campos só me lembro do "que poderia te sido". No momento em que penso que só me resta saltar, uma fada ruiva saltita de novo. Recebo uma chamada de madrugada a convidarem-me para jogar à sueca e procura o baralho que trago sempre comigo. Mas deve-se ter perdido no meio da chuva porque só me sobra uma carta amarrotada e suja. Sai na estação seguinte e vejo que o comboio nunca saiu do mesmo sítio. Descalço-me e entro em casa depois de deixar as chaves no lugar do costume. Olho-me ao espelho, lembrando-me das rugas do sentir e do corpo que tinha medo de não vir a ter. Antes de me deitar clico no rato do pc pacientemente ligado esperando ordens.
Vou sonhar que nunca acordei e fingir que esta viagem não aconteceu.
Espiral
Eu continuo o meu caminho, passo pela aldeia que conheço desde sempre, olho a praça onde imagino um casal colado a beijar-se, rente ao chafariz. Prometo, que para a próxima trago a máquina e eternizo esse momento. Passo por uma escola, brinco com um dos miúdos, rodopiando-o para sempre e canto todas as canções da disney que memorizei desde a infância. Digo que odeio o rato Mickey e que sempre gostei do pato Donald. Uma menina ri-se e diz que hoje todas adoram o Pateta. E gozam comigo porque não tenho voz para cantar. Mas fico feliz porque já faço parte do grupo no momento em que me convidam para ir numa visita de estudo. Não posso e aceno dizendo adeus, enquanto eles correm para dentro do autocarro. Fico na paragem à espera. Pedem-me uma dedicatória de final de curso e as palavras fogem-me, mas lá escrevo sonhos recheados de até breves e de esperanças. Quando começa a chover lembro-me que ali só há cimento e prefiro seguir o cheio da terra molhada. Sento-me nas escadas do jardim e escrevo uma mensagem sem destinatário. Ignoro as vozes que se riem esquecendo-se dos amores passados e desço a estrada feita de pedras de calçada. Escorrego e caio. Deixo-me ir. Já estou magoada e ferida. E a chuva não me consegue afogar. Vou parar à beira do terminal. Os meus olhos doridos vêm que parou de chover e um homem com hálito de bêbado ajuda-me a levantar. Graceja e diz que eu devia andar de comboio. Empurra-me para dentro do vagão e acena-me com uma máscara de madeira. Eu vou, sem perceber nada. As paisagens que não consigo captar passam por mim, velozes. Sento-me, meio distraída ao pé de uma mulher que lê tarot. Ouço risadinhas e percebo que as cartas são como pequenas televisões de onde ela observa o mundo. Televisões modernas a três dimensões, já que ela com os seus dedos esguios comanda as acções dos actores. Arrepio-me e tento levantar-me no momento em que o comboio pára. O safanão faz uma garrafa com um líquido transparente partir-se. Inalo-o e sinto-me tonta. Não posso dormir! Saio depressa, mas a mulher deu por mim e sorri. Mas não me impede de fugir. Sigo, hipnotizada, pelo comboio, sento-me na carruagem do fundo, onde não está ninguém. No chão mais que pisado estão letras escritas que não consigo ler. Parto as unhas ao tentar raspar a sujidade que se entrelaça naquela que pode ser a minha verdade. Penso que cheguei tarde e que perdi metade do filme. Sinto que o momento eterno já passou e como Álvaro de Campos só me lembro do "que poderia te sido". No momento em que penso que só me resta saltar, uma fada ruiva saltita de novo. Recebo uma chamada de madrugada a convidarem-me para jogar à sueca e procura o baralho que trago sempre comigo. Mas deve-se ter perdido no meio da chuva porque só me sobra uma carta amarrotada e suja. Sai na estação seguinte e vejo que o comboio nunca saiu do mesmo sítio. Descalço-me e entro em casa depois de deixar as chaves no lugar do costume. Olho-me ao espelho, lembrando-me das rugas do sentir e do corpo que tinha medo de não vir a ter. Antes de me deitar clico no rato do pc pacientemente ligado esperando ordens.
Vou sonhar que nunca acordei e fingir que esta viagem não aconteceu.
Espiral
Comentários
beijo
beijo*
agora algo com nexo - nao deixas de me surpreender com as imagens que crias, com a imensidao de sentimentos que fluem nas tuas palavras.. adoro o cheiro da terra molhada. no fundo pareceu me uma "realidade" feliz.. ou se talvez estivesse mascarada pelo teu sorriso de ha pouco.
*bj amiga
Etérea realidade, ou sonho concreto? É dificil ajuizar, apenas por ter o melhor de ambos...Uma mescla de "pequenas" realidades com o ritmo e imprevisibilidade a um sonho inerentes...E ainda dizem que os sonhos não fazem parte da realidade...Tu vais longe...
Beijo grande